sábado, 10 de outubro de 2015

Os dois lados

Por Amanda Maymi 

Ontem eu chorei. Chorei porque presenciei a violência obstétrica como nunca antes. E porque fui feita sua cúmplice. Ela chegou com dor. Eu a recebi na admissão no período da manhã. "Dor de chorar". Ela foi internada com 6 centímetros de dilatação. E dor "de chorar". Durante a tarde eu estava no Centro Obstétrico. Eu não a havia reconhecido até ela me chamar para me lembrar de sua dor. Me disse que a médica havia prometido um remédio e eu fui conferir. Ao chegar na bancada da enfermagem encontro uma profissional preparando um soro para ela. Não era analgesia, era ocitocina. Ela chorou. Muito mais do que eu. A esse ponto eu nem imaginava que iria chorar por ela. Ela chorou várias vezes. Dois toques. 9 centímetros. "Agora para de gritar e faz força pro teu bebê nascer". Ela não conseguia lidar com aquela dor. Na gestação anterior, um trabalho de parto prolongado que "evoluiu" para cesárea. Ela pedia para ser cortada de novo, de tanta dor. "Não vai dar, vai para a mesa de parto". Mais gritos. "Fecha a boca para fazer a força certa". Eu não era mais estudante de medicina nesse momento. Era doula. Tentava consolar aquela mulher cercada por médicos e outros profissionais. O pai ficou fora da sala. Não estava "preparado psicologicamente" segundo o chefe. Eu não acompanhava mais o andamento do parto. Só conseguia olhar para ela. Tentava falar com ela. Ela não queria mais falar. A violência já havia sido demais. Contração. Grito. O médico, que estava do outro lado da paciente, posiciona o antebraço sobre sua barriga e eu já sei o que vai acontecer. Ele começa a pressionar, fazendo a manobra de Kristeller (banida pela OMS, Ministério da Saúde e Conselhos Regionais e reconhecida como violência obstétrica pelo Ministério Público). Respirei. Mais gritos. "Prepara o kit de episio". Nesse momento, ele abre a mão bem na minha frente, e essa imagem ainda não saiu da minha cabeça. Eu já havia entendido, mas não queria. "Segura aqui minha mão", ele disse para mim. Segurei. Durou uns 20 segundos. Gritos. Ele soltou a minha mão e tudo o que consegui fazer foi sair dali. O mais rápido que podia. As lágrimas já começavam a rolar. Não consegui voltar. Depois soube que além da episiotomia, foi utilizado fórceps. Ela não quis dizer o nome do bebê. Ela não quis dizer mais nada.
Hoje eu chorei. Chorei porque vi a humanização na obstetrícia tomando forma real. E porque fui feita sua cúmplice. Era sua primeira gestação. Ela acordou com dor. Não sei com quantos centímetros ela chegou, eu não estava lá. Mas logo já estava com 8. Quando me pediram para escutar os batimentos do bebê ela já estava com 9 centímetros e fazia um bom tempo que estava debaixo de chuveiro. Entrei o banheiro e vi uma cena inédita. Ela não estava no banquinho, relaxando embaixo d'água. Estava em quatro apoios, aproveitando cada contração. "To sentindo aqui embaixo". Encontrei os batimentos bem baixos mesmo. Estava quase na hora. Ela pedia para ver no espelho. "O que eu devia estar vendo?". "Espera a próxima contração que você vai ver", eu disse. Dito e feito, na próxima contração já estávamos vendo os cabelinhos. A música instrumental ficava mais baixa naquele cômodo, mas era audível. Ouvi até alguém comentar que gostava de uma das músicas quando começou. Mais duas contrações e a cabeça já estava lá. Mais duas e eu tinha o bebê inteiro nas minhas mãos. Ali mesmo. Debaixo do chuveiro, em quatro apoios, ela pariu. Eu, de joelhos, já estava meio molhada também. Coloquei o bebê em seus braços e em poucos instantes eles estavam trocando olhares. O cordão ainda pulsava, portanto permaneceu intocado. A avó cortou o cordão. Fomos para a cama aguardar a placenta descer. Enquanto isso, mãe e bebê aproveitavam o contato pele-a-pele. Pele com pele mesmo, sem roupa entre os dois, permitindo o importantíssimo primeiro contato. A placenta desceu sem qualquer problemas. Lacerações? Uma parauretral de primeiro grau e mais ou menos um centímetro. Sem necessidade de pontos. Ela levou a placenta para casa, mas antes disso fizemos a Árvore da Vida, essa aí na foto.
Ontem eu não sabia o que fazer, estava sem chão e sem esperanças. Hoje, recuperei minhas forças e minha vontade de lutar. Acredito que TODA MULHER merece atendimento humanizado, seja em parto natural, domiciliar, hospitalar ou cesariana. Porque diferente do que me ensinaram na faculdade, não acho que parto humanizado e parto seguro sejam coisas dissociadas. Inclusive, sentiria vergonha (e não orgulho) de dizer que faço parto seguro, não humanizado. Porque isso é admitir o que todo mundo já sabe: que o atendimento dado a muitas parturientes é desumano. E é por isso que não deixarei de lutar. Porque, citando um amado amigo meu, "Não se trata de humanizar as pessoas. Essas já são humanas. Se trata de humanizar as relações."

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